domingo, 28 de junho de 2015

Matutanto #10 - Alguns pensamentos sobre violência


Faz quase um ano que não escrevo nada nessa coluna, mas hoje eu presenciei um acontecimento que me motivou a escrever um pouquinho.

Meus pais tem uma daquelas loja de utilidades conhecidas como lojas de 1,99. Lá a gente tem de tudo em preços variados, desde balas e chicletes até pratos, lixeiras, brinquedos e ferramentas. Eu trabalho com meus pais todos os dias, e assim eles me pagam um salário fixo e me ajudam a pagar minha faculdade. Funciona bem.

É muito comum acontecerem coisas engraçadas e estranhas (em breve pretendo fazer um post sobre isso). Mas hoje o que aconteceu foi um crime.

Já era quase quatro da tarde e eu estava no caixa, como sempre. Um rapaz vestido de forma humilde, como literalmente todas as demais pessoas que frequentam a loja, chegou fazendo uma pergunta:

- Oi moça, posso deixar minhas coisas aqui na frente?

Ele carregava uma mochila, uma sacola de supermercado e um saco com um cobertor. Eu disse que podia, a pesar de que sempre deixamos os clientes entrarem com as coisas a não ser que façam questão de guardar. O moço entrou e eu continuei atendendo clientes.

Alguns minutos depois, ele chega ao lado do caixa e pergunta o preço de um cadarço. 

- Custa R$2 - respondo.

O moço assente, eu me volto para a venda. Lembro que a moça que eu estava atendendo estava comprando um balde e uma lixeira. Enquanto eu enchia as sacolas dela, a outra funcionária da loja, minha amiga Katiane, bate no meu ombro. Eu olho para ela e ela me diz:

- Nathália, aquele moço está saindo com o cadarço no bolso e não pagou.

Congelei por alguns instantes. Olhei para ela e para a sacola que eu estava segurando com os produtos da cliente. O moço tinha acabado de sair da loja e já nem estava mais na minha vista. Depois de uns dez segundos paralisada, falei para ela contar ao meu pai, que estava no depósito, o que tinha acontecido.

Sim, roubar um cadarço de dois reais parece idiota. Na verdade, quando eu pedi que ela avisasse meu pai eu achei que o máximo que ele iria fazer era ficar bravo e talvez registrar um boletim de ocorrência. Mas meu pai se materializou na frente da loja e saiu correndo e gritando na rua atrás do homem que tinha roubado o cadarço. O homem não tinha ido muito longe, então meu pai o pegou pelo braço, o levou para dentro da loja e pediu para minha mãe chamar a polícia.

Na verdade, ele não tinha roubado apenas um cadarço. Também tinha levado uma lanterna de R$25, sendo que outras lanternas iguais aquela já tinham sido roubadas antes (uma vez meu pai passou um dia inteiro procurando na câmera da loja para ver se achava quem estava roubando as lanternas). Não dá para saber se foi esse mesmo rapaz que roubou as outras lanternas, mas quando nós perguntamos a ele ele se fez de desentendido.

Enquanto esperávamos a polícia chegar, meu pai deu uma dura no rapaz. Disse que se ele estava passando necessidade e precisava de comida, meu pai poderia ter feito uma caridade por ele (a gente sempre dá comida se alguém pede na loja, mas nunca dinheiro), que roubar não é o caminho certo etc. Enquanto isso, o moço chorava e pedia desculpas. Não tentou fugir nem atacar meu pai ou nenhum de nós (quando meu pai correu atrás dele eu tive medo que estivesse armado ou fosse bater no meu pai, mas felizmente não foi o caso), ele pedia que meu pai deixasse ele ir embora, que não queria ser preso, que a mãe estava doente e que ele estava desempregado e passando necessidade. Não sei até que ponto a história que ele contou era verdadeira, apenas achei que seria bom repetir o que eu ouvi.

A policia chegou e meu pai ficou do lado de fora da loja, com minha mãe, contando a um policial o que tinha acontecido. Eu estava dentro do caixa, dentro da loja, e vi enquanto os policiais revistavam o homem e seus pertences. Acharam outras coisas que ele deve ter roubado em outras lojas, como uma garrafa de pinga, um teclado de computador, DVDs lacrados e parece que o cobertor que ele carregava também era roubado. 

O que me chocou tanto na situação foi a violência policial que eu presenciei. A gente costuma ver notícias na internet de casos de pessoas acusadas de algum crime - ou às vezes pessoas que estavam no lugar errado na hora errada - apanhando dos policiais. Não conheço o rapaz que roubou a loja e não sei absolutamente nada da vida dele, mas ele estava chorando e desesperado. Tremia feito folha e pedia desculpas aos policiais. Ele não conseguia ficar de pé direito (estava ajoelhado pedindo desculpas), e foi então que um dos policiais bateu nas costas dele e mandou que ficasse de pé. O moço tinha que ficar de costas contra a parede, de pernas abertas e com as mãos para o alto (para ser revistado). Um dos policiais chutou as pernas dele para que ele as mantivesse abertas, e eu sei que doeu, pois era um chute com uma daquelas botas de couro com ponteira de metal.

Não estou tentando defender o homem que roubou a loja. O que ele fez não estava certo. Eu sou uma grande defensora dos direitos humanos e entendo que muitas vezes muitas pessoas são levadas a crer que a única opção que tem na vida é roubar - ou traficar drogas, ou entrar numa gangue, ou qualquer coisa do tipo. Não culpo este homem por ter tomado a decisão de roubar a loja - e outras lojas. Não foi certo, mas entendo que nem todas as pessoas tem ou tiveram os mesmos privilégios que eu tive na vida, como ter um emprego estável junto dos meus pais, uma boa casa para morar, oportunidade de estudar numa escola pública. O simples fato de eu nunca ter passado fome na vida me torna privilegiada. O moço não estava certo ao cometer um crime, mas os policiais não tinham direito de chutá-lo.

Também não culpo inteiramente o policial. Provavelmente, está cansado de lidar com a mesma situação todo dia, cansado de ter que ir atrás da mesma pessoa que é solta toda vez que é pega pois o sistema judicial brasileiro é péssimo e demora anos para fazer literalmente qualquer coisa.

Enfim, logo o rapaz se recuperou do choque. Como não tinha roubado apenas nossa loja e, pelo que entendi, já tinha passagem pela polícia, ele foi algemado e levado para a delegacia. Meu pai fez um boletim de ocorrência, mas não sei o que vai acontecer com o rapaz a partir de agora.

O que me choca na situação foi não saber o que fazer. Fiquei com medo do rapaz e pelo rapaz. Não sei o que vai acontecer com ele. Vai ser preso, afinal? Vai ficar na cadeia? Será que a mãe dele está mesmo doente? Se sim, será que ela depende dele? Será que ele tem filhos? O que vai acontecer a essas crianças? 

O que vai acontecer com este homem e outros homens e mulheres como ele? Se ele tivesse 16-17 anos, e a lei da maioridade penal fosse praticada, ele seria preso (ou teria ficha na polícia) já tão jovem. Não teria a oportunidade de terminar os estudos - se é que tivesse acesso aos estudos, pois muitos adolescentes hoje em dia ainda são obrigados a largar a escola para trabalhar - e teria seu nome manchado com um antecedente criminal de uma época em que estava desesperado por alguma chance na vida. É justo? 

É justo?

Este homem, eventualmente, sairá da prisão. Hoje, amanhã, semana que vem, daqui dez anos. Quando sair, não conseguirá um emprego decente. Será praticamente impossível para ele entrar em uma faculdade. Eventualmente, ele sucumbirá ao crime outra vez. Este é o sistema em que nós vivemos. Nosso sistema não está preocupado em reformar cidadãos como ele, mas sim mantê-los presos ou abaixo na linha da significância até que morram e apodreçam. Estou mentindo? 

Estou mentindo?

Como chegamos a este ponto?

Um comentário:

  1. É muito triste tudo isso que você relatou, a violência e a criminalidade aumentam a cada dia. É lamentável ver tanta gente, ainda jovem, no mundo do crime. Fique esperta ai na loja e que Deus a proteja. Bj

    ResponderExcluir

Olá, ser (in)humano! Tudo bão?
Então, seje feliz e comente o que quiser! Só não vale ser preconceituoso, postar conteúdo indevido ou me encher de spam (eu tenho lotes para capinar, sabia?).
Caso tenha alguma pergunta sobre o post, pode comentar que eu responderei dentro de 24 horas. Mas, se quiser, pode me mandar um e-mail! Meu endereço é: nlbrustolin@hotmail.com
Divirta-se =D